Por Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite
“O Brasil é um país mestiço, com algumas ilhas negras”.
(Glória Moura, no livro “Os herdeiros da noite”)
(Glória Moura, no livro “Os herdeiros da noite”)
Os anúncios de fuga, venda e aluguel de negros, no século 19, são considerados os primórdios dos atuais classificados impressos nos jornais que circulam no cotidiano dos brasileiros. Analisando sob o prisma econômico, o negro era considerado uma mercadoria (um bem) da qual seu proprietário fazia o uso que desejasse: a mão de obra escrava podia ser vendida ou alugada (escravos de aluguel).
Nossa economia, durante o período colonial e imperial, foi baseada no latifúndio monocultor e na mão de obra escrava, onde o status social era proporcional à quantidade de escravos que o proprietário possuísse para servi-lo. A fuga ou morte de um escravo representava um prejuízo financeiro a seu dono, principalmente após a Lei de Euzébio de Queirós (1850) que proibiu o tráfico de escravizados. Diante desta proibição, intensificou-se o comércio interno, entre as províncias, e o custo para comprar um escravo ficou ainda mais caro. Neste nefando mercado, o tráfico negreiro oferecia escravizados, com altas taxas de custo, visando a suprir a falta de mão de obra que era adquirida, na “Mãe África”, por baixos valores ou pelo simples sistema de permuta.
O negro saudável, em boa condição física, tinha um valor monetário alto, e muitos enriqueceram praticando esta intermediação comercial, inclusive, coma participação, muitas vezes, de irmãos de etnia que, depois de comprarem sua liberdade (alforria), ganhavam dinheiro, participando do aprisionamento e transporte nos tumbeiros (navios) de escravizados, para serem comercializados, a exemplo também de outros negros que, na condição de “capitães do mato”, perseguiam seus “irmãos de etnia” quando estes fugiam do cativeiro.
Ainda que paradoxal, é o fato de existirem jornais que defendiam um discurso abolicionista, porém, devido a dificuldades de ordem econômica, divulgavam esses anúncios. Em Pelotas (RS), A Discussão (1881), de acordo com o historiador, escritor e militar Souza Docca (1884-1945), foi o jornal pioneiro, no Brasil, ao deixar de publicar anúncios, nos quais estivesse presente a figura do escravizado.
O primeiro jornal impresso na Província de São Pedro (RS), o Diário de Porto Alegre, iniciou sua circulação em 1º de junho de 1827, encerrando suas atividades em 30 de junho de 1828. O título do periódico foi uma homenagem à Capital da província gaúcha. Além da presença das notícias de teor político, do movimento comercial da cidade e também de sonetos, eram constantes os anúncios de venda, fuga ou aluguel de escravizados. Seguem alguns exemplos de anúncios publicados neste periódico que foi o pioneiro da imprensa gaúcha:
Venda: Vende-se uma escrava parda, cozinheira, costureira, engomadeira e rapariga. Quem a quiser comprar procure na rua da Igreja nº 25, à direita, na esquina dos Pecados Mortais (trecho da atual Bento Martins).
– Quem quiser comprar uma molequinha nova (escrava-criança) cozinha o ordinário. Quem pretender comprar dirija-se a rua do Arvoredo a casa nº 13 e ali achará com quem tratar.
Fuga: – Uma escrava de nome Francisca de nação rebola, idade de 25 anos, estatura ordinária, beiços grossos e um sinal na testa como um círculo de um vintém, fugiu em março. Quem a trouxer dirija-se a rua do Cotovelo n º 70, que ganhará boas alvíssaras.
Aluguel: – Quem tiver uma ama-de-leite que seja sadia e saiba tratar crianças e queira alugar, anuncie a sua moradia para ser procurado.
A presença destes anúncios foi uma característica presente nos jornais do país, por um longo período, a exemplo do Correio Paulistano que, no dia 15 de abril de 1874, publicou este anúncio de fuga de três escravos de uma fazenda.
Escravos Fugidos
Fugiram em dias de Março do corrente anno, da fazenda de José Fernando d’Almeida Barros do município de Piracicaba, os escravos: Pantaleão, alto fulo, nariz afilado boa dentadura, bahiano, falla macia 30 annos. Fernando preto, baixo, corpulento, boa dentadura, bahiano 25 annos mais ou menos. Estes escravos foram trazidos a esta província ha pouco tempo pelo sr. Raphael Ascoli; levaram alguma roupa fina e blusa de baeta vermelha, e oferece-se uma boa gratificação a quem os prender e entregar ao seu senhor ou em São Paulo ao sr. José Alves de Sá Rocha.
A Revolução Industrial, liderada pela Inglaterra, desde o século 18, trouxe mudanças nas relações de trabalho e produção, embora a exploração de mão de obra permanecesse, dando origem a vários movimentos e greves de operários (Movimento do Proletariado) que foram se organizando, enquanto classe, na defesa de seus direitos e melhores salários. Crianças e mulheres eram exploradas pelos proprietários das fábricas. A Revolução Industrial resultou numa outra forma de dominação e exploração das elites econômicas. Com as transformações, no campo econômico, surgiu o operariado que, sendo explorado pela classe patronal, passou a lutar por melhores condições de vida e justiça social.
Retomando a questão da escravidão negra, quando foi do interesse britânico, os ingleses criaram, em 1831, uma lei proibindo o Tráfico Negreiro, pois o dinheiro investido, nesse mercado infame, poderia ser utilizado na compra de suas mercadorias, ampliando o seu mercado de consumo e gerando mais riqueza para o país.
O Brasil foi o último país a realizar, tardiamente, a abolição (1888) nas Américas, assim como a última monarquia num contexto de países independentes e republicanos. A liberdade concedida, pela Lei Áurea de 13 de maio de 1888, a esta população escravizada, ocorreu sem um planejamento de inclusão social para estes homens que, embora estivessem livres do jugo da escravidão, estavam despreparados para adentrar numa sociedade capitalista e competitiva, além de carregarem o estigma de terem sido escravizados.
Evidente que, dentro deste contexto de exclusão, a sobrevivência do liberto ficou limitada a espaços próprios dos cidadãos denominados de “terceira classe”, caracterizados pela baixa renda econômica ou por total ausência de recursos, vivendo em total miserabilidade e esquecimento social. Ainda temos de considerar o fato de que muitos libertos preferiram seguir junto a seus antigos senhores a ficar ao relento da rua sem nenhum auxílio.
Em Porto Alegre, no imaginário construído pelo preconceito, os locais conhecidos como territórios negros, a exemplo da Colônia Africana (atual bairro Rio Branco), Ilhota e Areal da Baronesa, eram considerados espaços “malditos” e frequentados somente por gente de “má fama”, como registrou a historiadora Sandra Jatahy Pesavento (1945-2009) em seu livro, Uma outra Cidade / O mundo dos excluídos no final do século XIX, publicado, em 2001, pela Companhia Editora Nacional.
A sociedade ofereceu a liberdade, mas não o passaporte da cidadania que se estabelece pelo viés da inclusão social. Infelizmente, sentimos o legado nefasto desta política colonialista e excludente até os dias de hoje. O racismo, em suas diversas formas de manifestação, constitui-se num câncer social que deve ser extirpado, visando à construção de uma sociedade mais justa e fraterna. O caminho é longo e pontuado por inúmeros desafios, mas não podemos desistir desta conquista.
Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite é pesquisador e coordenador do Setor de Imprensa do Musecom*
Bibliografia
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Fonte: O Jornal de Todos os Brasis
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