sexta-feira, 30 de junho de 2017

10 músicas sobre política no Brasil

ideologia

“Amigos costuma ter no partido do governo,
Mas em tempos de eleição
Decide mostrar-se contra e outros amigos encontra
Nas hostes da oposição.
Por motivo semelhante, quando esperam que ele jante
Em casa de um ministro ou
Que compareça ao banquete de alguém que esteja em manchete,
Ele come num bistrô.” T. S. Eliot

música brasileira, assim como sua gente, é mista e abarca uma variedade de gêneros. Dos mais diferentes tipos, passando por inúmeros trejeitos, atravessando gerações e ritmos, os compositores da terra tematizaram sobre política, de maneira crítica, panfletária, indignada ou persuasiva. O que também traz à tona outra característica rica e importante, fundamental, tanto para a música quanto para a política: a diversidade de opiniões que compõe uma democracia. Eleja o seu candidato preferido, eles desfilam com seus galardões. Noel Rosa, Cazuza, Adoniran Barbosa, Lobão, Raul Seixas, Nássara, João do Vale, Renato Russo, Arlindo Marques apresentam propostas.

1. Onde está a honestidade? (1933) – Noel Rosa

Logo na primeira metade da década de 1930, a música brasileira versava sobre política. E o título da canção era justamente “Onde está a honestidade?”, um samba de Noel Rosa lançado pelo próprio. Século depois, e a música continua atual, o que prova não apenas o poder de captura e síntese de Noel Rosa, como a percepção de que a crônica dos costumes nacionais não se alterou de maneira dramática dali pra cá. Ou talvez seja esse o drama. A letra não poderia ser mais precisa: “Você tem palacete reluzente/Tem joias e criados à vontade/Sem ter nenhuma herança nem parente/Só anda de automóvel na cidade/E o povo já pergunta com maldade:/‘Onde está a honestidade?’”.




2. A menina presidência (1937) – Nássara e Cristóvão Alencar

Em 1937, não se aventava a possibilidade de uma mulher governar o Brasil, ainda assim o gênero feminino se via presente na marchinha composta por Nássara e Cristóvão Alencar, lançada por Silvio Caldas na companhia da Orquestra Odeon. O título “A menina presidência”, era referência à disputa entre três homens ao cargo: Armando Salles de Oliveira, chamado de “seu Manduca” na letra, Oswaldo Aranha, tratado por “seu Vavá”, e Getúlio Vargas, o vencedor, na ocasião, referido como “seu Gegê”, que desejavam essa vitória como a uma mulher. A marchinha tornou-se vencedora de um concurso promovido pelo jornal “A Noite”, intitulado “Quem Será o Homem?”.




3. Se eu fosse Getúlio (1954) – Arlindo Marques Jr. e Roberto Roberti

Em 1954 a palavra “mamata” já estava tão impregnava no dia a dia dos brasileiros, e da política do país, que foi parar, com justiça, numa marchinha de Arlindo Marques Jr. e Roberto Roberti, que dá boa medida dos feitos de nossos representantes quando ocupam cargos públicos. “Se eu fosse Getúlio”, dava dicas ao ditador sobre como solucionar os graves problemas sociais e econômicos que assolavam a nação. Cheia de ironia e cinismo, a receita era aparentemente simples, questão de colocar os doutores e funcionários públicos para trabalhar. “Mandava muita loura/Plantar cenoura/E muito bonitão/Plantar feijão/E essa gente da mamata/Eu mandava plantar batata”.



4. Sina de Caboclo (1964) – João do Vale e J. B. de Aquino

Dez anos depois do suicídio de Getúlio Vargas o Brasil saía de uma ditadura e entrava em outra. Logo no primeiro ano do período de chumbo que transcorreu no país de 1964 a 1985, o compositor João do Vale lançou no espetáculo “Opinião”, de Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, dirigido por Augusto Boal, em que contracenava com Nara Leão e Zé Kéti, a música “Sina de Caboclo”, parceria com J. B. de Aquino. Nela, os compositores se rebelam contra a exploração dos patrões ao trabalhador rural. Gravada por Nara Leão no mesmo ano, a canção apresenta, logo no início versos de força e resistência: “Mas plantar pra dividir/Não faço mais isso, não”.




5. Despejo na favela (1969) – Adoniran Barbosa

Não é por falta de mérito que Adoniran Barbosa é tido e havido como cronista. Além de capturar o sotaque e a prosódia específica da população paulista descendente da colônia italiana que aportou no Brasil, e da qual fazia parte, o compositor se sensibiliza com as questões mais rotineiras e diárias vividas pela população, das trágicas às cômicas, sempre com um toque de incentivo. “Despejo na favela”, de 1969, foi lançada pelo sambista Nerino Silva no compacto do V e último “Festival da Música Popular Brasileira” produzido pela TV Record. No samba, fica clara a maneira desonesta e intolerante com que os políticos brasileiros comandam as remoções dos moradores mais pobres. Em 1980, foi regravada por Adoniran em parceria com Gonzaguinha.





6. Inútil (1985) – Roger Moreira

Com a abertura para a democracia na política brasileira a música também se abriu para um novo ritmo, a princípio estrangeiro, mas temperado com o estilo tupiniquim de se comunicar. O rock nacional dos anos 1980 apresentou bandas e compositores com diferentes embalagens e conteúdos. Em São Paulo, um dos maiores destaques foi o “Ultraje a Rigor”, liderado pelo vocalista Roger Moreira, autor da emblemática canção “Inútil”. Além de fazer troça com a forma oral de se expressar, ignorando os plurais, ainda lançava ácidas críticas à capacidade dos brasileiros de definir os próprios destinos. “A gente não sabemos escolher presidente/a gente não sabemos tomar conta da gente”.




7. Que País É Este? (1987) – Renato Russo

1987 foi um ano profícuo de canções com referência à política brasileira. Nenhuma delas elogiosa. Um dos que estendeu a bandeira com maior propriedade e relevância foi o compositor e vocalista da banda “Legião Urbana”, Renato Russo. O protesto tornou-se tão simbólico que é hoje praticamente um ditado popular: “Que País É Este?”. A música aborda de forma direta e narrativa episódios de corrupção e violência na política brasileira, e ainda chama a responsabilidade a todos, antes de chegar ao início do processo que teria se dado logo na “apropriação” do país pelos portugueses, quando o autor clama aos que aqui estiveram primeiro. “Quando vendermos todas as almas/Dos nossos índios num leilão”.




8. Cowboy Fora Da Lei (1987) – Raul Seixas e Cláudio Roberto

Raul Seixas é um artista iminentemente político, talvez por esse poder de transformação associado à sua figura tenha permanecido com tanta força como uma figura popular e lendária. Depois de lançar vivas e efetivamente fundar os preceitos de uma “Sociedade Alternativa”, além de pregar ensinamentos cósmicos e de rebeldia, o “Maluco Beleza” lançou, em 1987, as suas considerações sobre assumir um cargo público. “Cowboy Fora Da Lei”, parceria com Cláudio Roberto, debocha, logo no início, da forma arcaica e coronelista que fundou grande parte da nossa política. “Mamãe não quero ser prefeito/Pode ser que eu seja eleito/E alguém pode querer me assassinar”.




9. Panamericana [Sob o sol de Parador] (1989) – Lobão, Arnaldo Brandão e Tavinho Paes

Em 1989 o compositor Lobão dispara para todos os lados no desabafo contra as maneiras truculentas e com uso da violência de se fazer política na América Latina. Na canção “Panamericana [Sob o sol de Parador]”, parceria com Arnaldo Brandão e Tavinho Paes não se alivia a barra para “os ditadores do Partido Colorado”, “os guerrilheiros de Farrabundo Marti”, “os assassinos dos índios brasileiros” ou os “fuzileiros do M – 19”, entre outros citados nominalmente ao longo da letra, que ainda conta com lembrança à histórica frase atribuída ao revolucionário Che Guevara: “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura”. Lobão endurece com um rock de batida potente e ágil.




10. Brasil (1988) – Cazuza e George Israel

Bem ao estilo de Cazuza, a música “Brasil”, parceria com George Israel, apresenta versos tão sintéticos quanto rascantes, um verdadeiro nocaute poético aos que se apoderavam do país em benefício próprio. “Brasil, mostra a tua cara!/Quero ver quem paga/Pra gente ficar assim!/Brasil, qual é o teu negócio?/O nome do teu sócio?/Confia em mim”. Após enumerar uma série de abusos e privações sofridas pela população brasileira, Cazuza deixa claro que o protesto e a indignação são, na verdade, uma declaração de amor. Lançada pelo compositor em seu álbum “Ideologia”, de 1988, foi regravada por Gal Costa no mesmo ano e virou tema de abertura da novela “Vale Tudo”.




Fonte: Site Esquina Musical

domingo, 25 de junho de 2017

Levante Integralista de 1938 no Brasil.

Dos arquivos da AIB

Por João Artur.

Ao estudarmos a história do Brasil, logo se percebe que é complexa e requer uma analise mais apurada sobre o assunto. Aqui abordaremos apenas um resumo do que foi esse levante integralista e seu contexto histórico.

A primeira pergunta que logo nos vem à mente é: O que foi esse levante? Na verdade foi um movimento armado brasileiro, ocorrido precisamente na noite 10 de maio de 1938, realizado por integrantes da Ação Integralista Brasileira – A.I.B; contra o governo autoritário de Getúlio Vargas.

Dos arquivos da AIB

Para o governo uma noite sombrio, já que o Palácio do Catete (Palácio Guanabara – Rio de Janeiro) foi tomado por algumas dezenas de integralistas que, sob o comando do então Severo Fournier, mantiveram o presidente Vargas e alguns de seus familiares cercados por aproximadamente três horas. (Do diário de Getúlio, em Paulo Moreira Leite, “Getúlio volta à cena”, Veja, São Paulo, 13/12/1995)

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O Globo Página 1 - Edição de 11 de maio de 1938 

Detalhe da primeira página da edição das 13h de 11 de maio de 1938: Plínio Salgado tenta tomar o poder, é derrotado, mas intentona deixa mortos entre os que defenderam o governo
O Globo - Edição das 13 Horas.

Antes que a polícia ou Exército chegasse ao local, o grupo procurou resistir com armas na mão. Com a chegada do policiamento, houve troca de tiros, quando quatro guardas e oito dos atacantes vieram a óbito.

Após o ocorrido, segundo Darcy Ribeiro, “em represália, são perseguidos e presos mais de mil integralistas e deportados alguns líderes liberais que apoiavam o levante, como Otávio Mangabeira, Júlio de Mesquita Filho, Armando de Salles Oliveira, Paulo Duarte e Flores da Cunha”.  Já Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale (fundadores da AIB em 07 de outubro de 1932), chefes dos chamados camisas-verdes, como eram conhecidos os integralistas, permaneceram intocados e apoiando Vargas, enquanto Severo Fournier foi para o calabouço (onde abandonado e amargurado, morreria por causa de maus-tratos e tuberculose). Estando na prisão, recebeu carta de outro prisioneiro politico Luís Carlos Prestes:

“Nessa luta, meu amigo, não devemos ver os homens e apoiar até o próprio Getúlio se amanhã se compreender a necessidade nacional de tal programa. E quem lhes escreve isto é o homem que, pessoalmente tem a Getúlio, o mais justificável ódio. Você deve saber que foi ele quem mandou entregar a Hitler minha dedicada companheira em estado de adiantada gravidez”. (Darcy Ribeiro. 1939)

Aqui Prestes orienta o amigo prisioneiro como proceder diante da realidade e cita a deportação de Olga Benário Prestes, ocorrido em 23 de setembro de 1936 quando embarcou no navio La Coruña rumo à cidade de Hamburgo, ela era militante comunista alemã de origem judaica. Ao chegar à Alemanha sofreu torturas nos campos de concentrações Nazista. Com o nascimento de Anita Leocádia Benário Prestes, em Berlim (27 de novembro do mesmo ano), foi-lhe retirada logo dos braços, após o nascimento; com certeza a pior de todas as torturas sofridas. Olga faleceu em 23 de abril de 1942, no Campo de Extermínio de Bemburg. 

Contexto histórico e as causas do Levante.

Os integralistas foram os grandes apoiadores de Vargas no combate contra os comunistas que no Brasil vinha ganhando inúmeros adeptos. Mas com o fechamento de todos os partidos políticos por Getúlio Vargas, após a decretação do Estado Novo em novembro de 1937, frustrou a AIB, que imediatamente gerou forte descontentamento dentro da Ação Integralista Brasileira.

A partir do descontentamento traçaram alguns objetivos com a finalidade de derrubar o governo Vargas, por meio de um golpe, e com a reabertura e funcionamento da AIB, que havia sido fechada pelo governo.

O Levante integralista foi mais um dos movimentos contrários ao autoritarismo implantado pelo governo de Vargas durante o Estado Novo (1937 a 1945). O Brasil nesse período era governado por governo centralizador, e sem democracia, perseguindo e prendendo opositores. Como vimos anteriormente, fechou partidos políticos, estabeleceu a censura e controlou todos os sindicatos. Essa forma de governo gerou insegurança e insatisfação entre civis, militares e políticos brasileiros que pretendiam o restabelecimento da democracia no país. O que não foi o caso, já que em 1964, ou seja, dezenove anos depois, o Brasil passaria por outro período de insegurança e incertezas políticas. Com o golpe militar de 1964, mais uma vez essa “democracia disfarçada de ditadura”, pouco ou quase nada vivida pelo povo brasileiro, já que ao longo de sua história foi mergulhada em golpes militares e crises políticas. Ainda hoje o fantasma da ditadura assombra o Brasil com seus gritos de torturas ecoados pela sua história.

Dos arquivos da AIB

Dos arquivos da AIB


Bibliografia

CAVALARA, Rosa Maria F. – Ideologia e organização de um partido de massa no Brasil. Bauru. EDUSC. 1999.

MOTA, Carlos Guilherme (Org.). História do Brasil: uma interpretação. – São Paulo: Editora 34, 2015 (4ª Edição). Pp. 662-663.

Diário de Getúlio em Paulo Moreira Leite, “Getúlio volta à cena”. Veja. São Paulo. 13/12/1995.

Ensaio de Alejo Carpentier) - Revista do Memorial da América Latina: “Villa-Lobos”, Nossa América, Nº 1; São Paulo, mar-abr. 1989. Pp.84-8.

“Depoimento de Darcy Ribeiro” [dado a Luís L. Grupioni e Maria Denise Fajardo Grupioni]. Em BIB – Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, Nº 44, Rio de Janeiro, jul.- dez. de 1997.

Imagens

Dos Arquivos da memória da Ação Integralista Brasileira - AIB.
Dos Arquivos do Jornal O Globo.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

O índio brasileiro: ainda um vazio na história.

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(Ilustração retirada do Google imagens)

A Academia Virtual de História traz um belíssimo texto do historiador e professor universitário Augusto Moutinho, sobre a questão indígena no Brasil, que praticamente vive no anonimato, quase nada é produzido a respeito. É necessário mais estudo e pesquisa quanto a importância da cultura indígena na formação do povo brasileira, como afirma  Moutinho no texto que "(...) a história do indígena permanece adormecida, ou sendo compreendida a partir de pseudo-interpretações". É o que normalmente ocorre. A história do Brasil fica centrado somente no branco, no europeu, ou seja,  uma história dos "vencedores", do colonizadores. Enquanto a figura do índio é apresentada como um preguiçoso e a do negro como escravo. 

Por Augusto Moutinho

Ao contrário do direcionamento incontável de análises sobre o negro, desde o início do século -- problematizando e enfocando os horrores da escravidão -- o índio tem ocupado um espaço microscópico em nossa historiografia. Esse lugar infinitamente pequeno e secundário que foi dedicado à história indígena tem legado esses povos ao esquecimento, ou lembrados subitamente em flashs sensacionalistas. O índio tem uma história; uma história indubitavelmente plural. É necessário então reconstituir o verdadeiro cenário; desconstruir abordagens simplistas que eurocentrizaram as análises, configurando o indígena num ambiente social exótico e primitivo.
Elementos como a antropofagia ameríndia ainda povoam o imaginário coletivo. A pintura de Theodor de Bry é reveladora das representações criadas pelo europeu, no começo dos tempos modernos, para o nativo brasileiro.
Essa resignificação histórica é também um resignificar de consciência. Para os indígenas é um olhar-se sobre si, reconstruindo suas identidades que, por tanto tempo foram mascaradas e ou desfiguradas por uma miopia historiográfica. As representações criadas para o indígena brasileiro ainda são projetadas e extrapoladas no infinito, passando a justificar tanto o presente quanto o futuro.

Notadamente, os etnólogos têm contribuído para uma investigação pormenorizada das sociedades indígenas. Dos mais antigos, escorados em Lèvi-Strauss ou Métraux, até os mais recentes como Roberto Cardoso de Oliveira, Maria Manuela Carneiro da Cunha, entre outros, procuraram se debruçar sobre o sentido da guerra, a organização social, as relações de parentesco, a religiosidade, e uma vastidão de assuntos, pormenorizando assim o universo social e cultural do índio. Contudo, e apesar dos notáveis trabalhos no campo etnológico, tais abordagens não substituem as análises históricas; estas se constituem um campo ainda embrionário no Brasil.

A historiografia brasileira, no entanto, vale-se de exemplos notáveis de autores que direcionaram suas análises para esse âmbito. Trabalhos como o de Stuart B. Schwartz, Segredos Internos; Ronaldo Vainfas, A heresia dos Trópicos; Ronald Raminelli, Imagens da colonização, ajudaram a diminuir o grande vazio que se formou por falta de abordagens mais específicas. É preciso insistir, porém, que as lacunas permanecem. Malgrado o brilho de tais trabalhos, a história do indígena permanece adormecida, ou sendo compreendida a partir de pseudo-interpretações. Se ampliarmos o poder da nossa lente, perceberemos que nos níveis escolares de primeiro e segundo graus, as representações construídas para o indígena brasileiro são ainda mais distorcidas e comprometedoras. Infelizmente o livro didático ainda é o filho abastardo das discussões e produções acadêmicas. O pouco que se tem avançado nessa área nas universidades, ainda não atingiu em cheio os manuais didáticos.

O conhecimento histórico tem experimentado uma intensa renovação nos últimos sessenta anos. Já na década de trinta a Escola dos Annales propõe novas temáticas para a história, contrapondo-se à historiografia positivista. Papel semelhante exerceu a Nouvelle Histoire, investindo nas mentalidades e questionando o próprio lugar de onde o historiador escreve. O marxismo também não ficou estático: de Gramsci a Eric Hobsbawn e E. P. Thompson, um estado de profunda efervescência intelectual ganhou corpo na arena do conhecimento histórico.

Nos últimos anos, contudo, tais modelos passaram por uma importante mudança de ênfase, a partir do interesse cada vez maior pela história cultural. As críticas movidas à disciplina (História) e ao próprio conceito de mentalidades contribuíram de fato para essa redefinição. A história cultural apresenta-se então como o grande refugio epistemológico.

As representações sociais mostram-se multifacetadas, o que determina, de certa forma o caráter plural da Nova História Cultural. Abordagens ancoradas nesse campo ampliariam o leque de problematizações acerca da história indígena. Apesar de distintos, modelos de história cultural de Ginzburg, Chartier e E. P. Thompson, pontuam elementos teórico-metodológicos tão importantes quanto necessários para a compreensão do processo histórico-cultural dos povos. É nesse sentido, que se faz necessário um direcionamento epistemológico que possibilite a resignificação histórica dos povos indígenas, considerando toda a sua complexidade cultural.

Esse eixo temático deve, em regime de urgência, ser ampliado e apresentado de forma mais consistente no livro didático, articulando-se então a outros temas. Para isso faz-se necessário uma desconstrução, principalmente no tocante a periodizações e tematizações. Geralmente, por ordem didática, ou até mesmo por determinações metodológicas, os capítulos são estratificados (política, economia, sociedade), limitando os aspectos culturais a subitens, quando não determinados por estruturas econômicas.

Outrossim, o conceito de sincretismo deve ser revisto, afastando as possibilidades de folclorização da cultura indígena, que ainda vem sendo tratada como elemento estático na História do Brasil. Esse sincretismo deverá ser percebido num contexto de circularidades e inter-relações com outras culturas. Reduzir a contribuição da cultura indígena a sua "herança" (vocabulário, comidas...), tal como vemos nos livros didáticos, é empobrecer a sua história.

Vale ressaltar que não se trata de decompor os discursos, tomando-lhes de assalto, num estado genérico de histeria revanchista. "Não se trata aqui de construir uma história-revanche, que relançaria a história colonialista como um bumerangue contra seus autores, mas de mudar a perspectiva e ressuscitar imagens esquecidas ou perdidas", salienta J. Ki-Zerbo em sua História Geral da África. Portanto, reescrever a História Indígena é, antes de tudo, modificar os discursos que durante tanto tempo representaram os nossos nativos com os mais nocivos e pejorativos adjetivos. É apontar, definitivamente, perspectivas mais seguras de compreensão do universo histórico e cultural do índio.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Google digitaliza e disponibiliza três mil anos de história da moda.


Publicado em 11 de junho de 2017 por .

Sob o título “We Wear Culture”, o Google digitalizou 30 mil itens e três milênios de história da moda em um projeto no qual participaram mais de 180 museus, instituições, escolas e arquivos de cidades como Madri, Londres e Paris para aproximar a moda dos internautas “com apenas um clique”.
O Google Arts & Culture, que criou mais de 450 exibições virtuais, narra as histórias dos itens desde a antiga Rota da Seda até o punk britânico, passando pelo surgimento do jeans como roupa de trabalho nas minas e sua evolução como ícone de alta costura, segundo explicou em um comunicado Kate Lauterbach, gerente de Programas da iniciativa.
“We wear Culture”, gratuito e disponível a partir de hoje no site g.co/wewearculture e no app do Google Arts & Culture no Android e iOS, mostra como a moda está presente na nossa sociedade e como a diva brasileira Carmen Miranda fez populares os sapatos de plataforma em 1930.
Uma iniciativa na qual participaram desde o Met Costume Institute de Nova York ao Victoria & Albert Museum de Londres, passando pelo Kyoto Costume Institute de Japão, o Museu Cristóbal Balenciaga de Guetaria e a Fundação Agatha Ruiz de la Prada.
Especialistas destas instituições contribuíram para reviver as histórias de peças que foram marco na história da moda através da realidade virtual. O Brasil está presente com 11 museus.
Confira clicando aqui: Cultural Institute

Fontes: História Hoje e Google.

Por que o Vaticano não se opôs firmemente ao Holocausto?

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Desde de 1930, o Papa Pio XI e outras lideranças da Igreja Católica, em várias ocasiões expressaram uma certa preocupação em relação aos avanços e consequências da ideologia nazista.

No ano de 1933, bispos alemães haviam assinado e publicado uma carta na qual falavam sobre os princípios do nazismo, a partir de atos que iam completamente contra os dogmas católicos. Junto à carta também escreveram ao governo assinalando repulsa pelos abusos recorrentes.

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Contudo, no mesmo ano, a Santa Sé assinou uma concordata junto à Alemanha, que ia de encontro a política usada pelo Vaticano no momento: tentar se juntar aos regimes opostos ao da Igreja para conseguir mitigar seus efeitos. No entanto, os nazistas não cumpriram os termos do acordo e perseguiram membros da igreja que se opunham ao nazismo.

Avançando mais no tempo, em 1937, a pedido de bispos alemães e para mostrar oposição e profunda crítica às ideologias nazistas, surgiu a encíclica “Com ardente preocupação” – uma carta circular do papa que abordava temas da doutrina católica. Mesmo entrando de forma escondida na Alemanha, a carta foi lida em um domingo, dia 21 de março de 1937, em todas as igrejas católicas do país.

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No entanto, em 1938, quando os nazistas invadiram a Áustria, o Cardeal Innitzer, de Viena, apoiou a presença do regime por meio de um comunicado, mas, rapidamente, precisou se retratar a pedido do próprio papa. Os nazistas, por outro lado, omitiram a informação, deixando apenas a primeira declaração ir ao ar.

Em 1939, após a morte de Pio XI, Pio XII assumiu seu lugar, sendo considerado um dos maiores colaboradores da encíclica, e principal signatário da concordata. A partir de 1941, enquanto os abusos nazistas aumentavam, a Igreja fez apelos contínuos através de canais diplomáticos pedindo ao governo nazista e aliados ao regime para que cessassem os ataques aos judeus. Tais fatos foram demonstrados em inúmeras documentações supostamente nunca reveladas ao público.

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Por outro lado, o papa não fazia declarações públicas porque, aparentemente, não queria agravar a situação ou causar mais vítimas – como ocorreu na Holanda, quando bispos holandeses protestaram contra os nazistas e em retaliação, o regime prendeu e deportou mais de 40 mil judeus nas semanas seguintes.

Grande parte dos historiadores concordam que, embora mínima, a ação da Igreja de fato conseguiu salvar muitas vidas. Ao seguir as instruções de Pio XII, religiosos esconderam muitos judeus em igrejas e conventos para que fossem salvos da perseguição. Até mesmo o próprio papa escondeu em Castel Gandolfo mais de 3.000 judeus.

Após o fim da Segunda Guerra, várias organizações judaicas agradeceram à Santa Sé pela ajuda oferecida. De acordo com o historiador judeu David Dalin, graças à Igreja, mais de 700.000 judeus foram salvos.

Ainda, em 1988, o Vaticano pediu desculpas ao mundo por não ter sabido agir melhor e com mais força, e pelas atitudes de alguns membros da Igreja à época. Alguns historiadores atestam que não podem ser desconsideradas as circunstâncias históricas por trás de todo o contexto, e que não se deve julgar o caso sem conhecer todos os fatos. Em suma, para eles, a Igreja não foi mais firme em relação aos abusos nazistas porque não queria causar mais vítimas.


Fonte: Site do Jornal Ciência

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Artigo - O imperador, a amante francesa e o bastardo natimorto.

A cidade avida pelas fofocas da corte. (Imagem: Debret).


Publicado em 11 de junho de 2017 por  - artigos.

D. Pedro apreciava “dançarinas e coristas, em detrimento de damas de alto coturno”, segundo o naturalista francês Victor Jacquemont. Na época, amantes e concubinas eram o avesso das esposas. Estas cuidando da linhagem e dos filhos, portanto do sangue. Aquelas, do prazer, logo, da carne. Ambas completavam o homem. As vagabundagens amorosas do príncipe eram largamente conhecidas e D. Pedro, apesar do matrimônio, não parecia inclinado a recusar nenhum deleite nascido dos sentidos.
A moça chamava-se Noémie Thierry. Filha de um artista francês, era dançarina de teatro. O príncipe encontrara-a num espetáculo no qual se exibia com a irmã, encantando-se com sua beleza e sensualidade. À mãe da jovem foi dada uma quantia vultosa para que ele pudesse gozar do privilégio de visitá-la secretamente. Posteriormente, Noémie foi alojada nas dependências do Palácio de São Cristóvão. Incapaz de dominar sua paixão, D. Pedro queria desposá-la secretamente. Segundo alguns contemporâneos, a moça era educada e empreendeu a instrução de seu real apaixonado.
Às vésperas da chegada de Leopoldina, a notícia dos amores do príncipe propagou-se pela cidade. Aliás, o assédio que fazia às mulheres era assunto corrente. Andava pelas ruas à cata de presas. Não poucas vezes, apeara do cavalo para levantar a cortina de uma cadeirinha que passava carregada no ombro de escravos. Ele não conhecia limites nem diante da família nem diante do marido da mulher desejada. Pais honrados trancavam suas filhas para protegê-las. Explicou um deles: “para que a língua do povo não rumorejasse.”
O gosto pela informação e a curiosidade pública desenvolviam-se na pequena cidade e deixavam os indivíduos em condições de “saber sobre os outros”. O povo adorava conhecer os boatos que varriam a corte. À boca pequena, murmurava-se sobre a rainha com o comandante das tropas navais britânicas, Sy dney Smith. A este, Carlota Joaquina deu de presente uma espada e um anel de brilhantes. Ou o assassinato com um tiro de bacamarte – a mando da própria rainha – da mulher de um funcionário do Banco do Brasil, sua rival. Enquanto isso, comentava-se a solidão de D. João VI, atenuada – dizia-se – pelos cuidados de seu valete de quarto.  
O caso do príncipe assumiu ares de gravidade quando se soube que a dançarina estava grávida. Daí nasceria um bastardo, antes mesmo de o consórcio realizar-se. A corte inquietou-se, pois o contrato de matrimônio já fora assinado e a ligação com a dançarina se tornara pública. O príncipe enfureceu-se e protestou quando lhe comunicaram que sua noiva austríaca já estava a caminho. Teve vertigens, passou mal. Recusou desfazer-se de sua “mulher”, como teimava em chamá-la. Rejeitava despedi-la, apesar das ordens, das ameaças feitas por seus pais, toda a corte e o ministério de ser deserdado. Falava-se que alguns cortesãos incentivavam o caso, na esperança de preservar suas próprias filhas. O certo é que D. Carlota Joaquina teve papel relevante nas negociações para afastar a bailarina de São Cristóvão. Sobre tais amores, costumava dizer a rainha: “Se os pais não fossem alcoviteiros, as filhas não seriam putas.”
Curiosa e inquieta, a cidade aguardou o desfecho do caso. Noémie cedeu, apesar de se confessar apaixonada e relutante em afastar-se de D. Pedro. Recusou-se, porém, a voltar para a Europa. Queria ficar no Brasil. Quem sabe um dia os amantes pudessem se reencontrar. Foi bem indenizada: amparada com um dote de cinco contos de réis, enxoval para o filho e, de quebra, ganhou um marido. Este, um oficial português que, por sua condescendência, foi dotado de seis contos de réis em dinheiro e um ofício que montava a 800 contos de réis por ano. Em Recife, Noémie deu à luz um prematuro natimorto. Dizia-se que o corpo embalsamado da criança foi guardado numa caixa e entregue a D. Pedro, que a mantinha no próprio gabinete.
  • “A Carne e o Sangue”, de Mary del Priore. Editora Rocco, 2012.

Fonte: Site http://historiahoje.com


terça-feira, 20 de junho de 2017

Texto e Documentário - Hospital Colônia: Um capítulo macabro da nossa história!

post


Por Elienae Maria Anjos  - publicado em 11 de janeiro de 2017.


“Hoje nós começamos a percorrer o ‘Centro Psiquiátrico’ de Barbacena, como o governo insiste em rotular. Os primeiros de seus dezesseis pavilhões. Suas enfermarias, seus pátios. Não encontramos os loucos terríveis que supúnhamos. Seres humanos como nós. Pessoas que, fora das crises, vivem lúcidas o tempo todo. Sabem quem são e o que fazem ali. O que os espera no fim de mais alguns dias, alguns anos. Pessoas que pedem para ser fotografadas, pedem a publicação de seus nomes. Insistem em voltar à sociedade, à família, ao afeto, à liberdade. Nem todas, porém. As alienadas, de tão drogadas, de tantos choques, tanta prisão. Crianças que não conseguem nem se locomover. Mas a maioria insiste em ter esperança de ser tratada como ser humano. Ainda há tempo.” 
(Hiram Firmino)
                                                                              
Enquanto maldades e atrocidades contra pessoas indefesas, como crianças, idosos, debilitados, portadores de deficiências físicas e doenças emocionais estiverem sendo retratadas apenas em uma tela ou em páginas de livros fictícios, nossas vidas, nossas mentes, nossos sentimentos e a nossa visão sobre o ser humano não serão completamente transformados, impactados ou virados de cabeça para baixo. Mas, e se inesperadamente algo ainda desconhecido por nós, trouxer a oportunidade de nos confrontar, nos colocando diante de uma história real, bizarra, cruel e inacreditável que aconteceu dentro do seu próprio país? Justamente em uma parte onde muitos fatos históricos carregados de revoluções humanas e crescimentos importantes contribuíram para o desenvolvimento da nação? Como entender que em um mesmo lugar com tamanha riqueza cultural, de grandes movimentos transformadores foi permitido interromper tantos desenvolvimentos humanos, aniquilando vidas?
Refiro-me ao livro da jornalista Daniela Arbex, Holocausto Brasileiro, (2013) que nos apresenta com riquíssimos detalhes, através de uma apurada investigação, o início e o fim de uma trajetória de injustiças, abandono, violência, desrespeito, falta de dignidade e excessivas dores que mais de 60 mil vidas foram submetidas, sem nenhuma explicação. Esses horrores iniciavam dentro de vagões de um trem que chegava à estação Bias Fortes, chamado “trem de doido”.  A locomotiva os levava para uma viagem sem volta.  Através dela, pessoas começavam um novo e aniquilante tempo sendo presas até a chegada da morte no suposto Hospital Psiquiátrico Colônia, localizado em Barbacena, Minas Gerais.
Ainda não posso afirmar como se encontra meu interior depois dessa leitura.  Tamanhas são as misturas de sentimentos, revoltas, lágrimas, espanto e até mesmo incredulidade diante de tantos males que descobri e que ainda estão vivas em minha memória. O que agora compartilho é o que me sinto relativamente aliviada em saber que essa história tão trágica de um dos maiores manicômios do Brasil, mesmo sendo muito tarde, chegou ao fim. Penso nas vidas que foram sacrificadas para que seus corpos absurdamente fossem vendidos em nome da pesquisa e da ciência… Excluídos da vida, perdendo o direito de usarem todos os seus sentidos naturalmente, porém em morte suas carnes e seus ossos serviram para gerar dinheiro, além de ajudar a “evoluir” a ciência em tantos laboratórios e hospitais de Minas Gerais.
Uma reflexão visitou minha mente várias vezes e até agora ainda alimenta minhas opiniões, me causando diversas emoções confusas entre revolta, tristeza e incapacidade de acreditar que em nosso solo existiu um campo Nazista: o manicômio Colônia. Ali, muitos funcionários também foram cúmplices, querendo ou não, dos fatos horrendos que a história não nega e nem esconde.
Pergunto-me quais interrogações àquelas vítimas carregavam. Será que tentavam em vão compreender o que fizeram para irem para aquele lugar? Que doenças eram aquelas que ao invés de receberem um tratamento, eram torturados com choques, lobotomia, duchas escocesas e abandono até a morte? Desde aquela época até hoje, não há outra forma melhor de chamar aquele hospital, do que um Holocausto, já que existem muitas semelhanças entre as atrocidades cometidas nesse local com as que ocorreram nos campos de concentração, durante a segunda Guerra Mundial. Nós, brasileiros, não tivemos oportunidade para olhar de perto o extermínio de vidas devido a indiferença nascida do preconceito.
Através dos tensos e sufocantes depoimentos, Daniela Arbex, teve acesso à realidade vivida pelos pacientes que tiveram o ciclo de suas histórias cortadas, amputadas por serem simplesmente diferentes ou por terem manifestado algum tipo de senso de ousadia e justiça em seu cotidiano. Naquela época (a partir de 1911), não era necessário uma pessoa apresentar fragilidades mentais ou emocionais, para ser internada com o propósito de um tratamento psicológico. Bastava ser um adulto tímido, triste, epilético, ter alguma fraqueza com bebidas, ser homossexual, prostituta, ter perdido seus documentos, a virgindade ou ter sido uma mulher abandonada pelo marido. E as crianças? Como iam parar ali? Elas também eram abandonadas por suas famílias naquele lugar, após terem a certeza que eram portadoras de algum tipo de  deficiência. Eu me vi nelas e chorei. Não havia a dignidade de se ter um nome, porque isso não tinha importância para a instituição. O nada não precisa ter identidade, o nada é vazio. Vestimentas não eram necessárias e suas cabeças eram raspadas, inexplicavelmente… não havia nenhum toque de humanidade naqueles corpos… Ninguém mais era dono de sua vida e nem responsável por suas vontades… não havia um alimento digno, o que era servido tinha a  aparência de lavagem . Os responsáveis por esse domínio cruel e pelas amputações de vidas, estavam tanto do lado de fora, quanto dentro do hospital: uns saíram de dentro das próprias famílias dos pacientes, outros do poder público da Cidade dos Loucos.
Se é que existe de fato alguma mazela classificada de loucura, com certeza passou a existir naquelas vidas porque foi imposta pelos seres “normais” que dominavam aquele ambiente hostil. Até hoje, mesmo com o nascimento de muitos médicos humanizados, seguidores da visão antimanicomial, infelizmente ainda há um domínio humano sem sensibilidade que insiste em tentar nos convencer de que a precariedade mental se encontra naquele que vive dentro de seu mundo inconsciente, buscando por diversos meios unicamente se conhecer e compreender o que se passa ao seu redor. Loucos, insensatos são aqueles que provocam muitos barulhos e violências nessas vidas, através de grades, drogas, amarras e surras. Tomando o controle de toda a liberdade e de mínimos direitos… Que intenção há nessa exclusão de afeto? Não se devolve a dignidade e a vida comum que há dentro da sociedade, excluindo a pessoa da interação e do convívio social.
“Vocês precisam entender que não somos tomadores de conta. Somos cuidadores. Os doentes têm o direito de retornar para a sociedade.”
Sabemos que onde falta amor, certamente falta visão externa e alma… e se falta alma, falta a vida, e se não há vida, nunca haverá sensibilidade para se saber o quanto se pode ferir um pássaro-humano, prendendo-o numa “gaiola”.
A cada página virada com cuidado aguardando mais um sofrimento ou renascimento, me vinha à lembrança, a história fictícia do livro “The Boy in the Striped Pyjamas”, (O menino do pijama listrado) de John Boyne, que retrata muito bem essa acepção com uma vida semelhante à nossa, mas afastadas e evitadas por carregarem um pensamento diferente ou terem outra cultura. Que existam mais Brunos entre nós! Que outros também consigam olhar o diferente sem desprezar o que ele é e o que pensa. Que pijamas listrados ou azulões, cor do que era usado na Colônia, não sejam usados com o propósito de separar vidas que são iguais às nossas.
Apesar de todo “nazismo” que há a cada página do livro de Daniela Arberx, pude identificar que a esperança existiu, e através dos relatos, reconheci muitos guerreiros humanizados do movimento antimanicomial que lutaram/lutam pelo fechamento não só daquela unidade, mas tantas outras que existem em nosso país.
Insisto em tentar acreditar que aquele sacrifício humano fez muitas pessoas se levantarem, se incomodando com o silêncio para proclamar uma verdade: quem precisa de cura é a humanidade preconceituosa e insensível. Tive essa certeza através de várias pessoas citadas na história que fazem parte do grande número de excelentes cuidadores, fora e dentro da medicina, que se doaram, mostraram imagens e filmes sem medo e sem pudor dos encarcerados daquele lugar. Não fizeram acepção e nem desistiram de lutar pelos menos favorecidos, ensinando até coisas simples, por exemplo, defecar e urinar no lugar adequado, necessidades básicas que aquelas pessoas deixaram de ter… Também presentearam aqueles pés com calçados, os corpos com vestimentas, a cabeça com cafuné e as almas com os abraços que não conheciam… Esses sensibilizados fizeram o impossível por várias décadas, até perderem o direito de exercer sua profissão como punição pelas vidas perdidas naquele manicômio. Muitas delas puderam viver na realidade, um pouco do que Bruno, o personagem alemão do livro de John Boyne, tentou ser em sua inocência infantil: um anjo, um doador de alimento, de atenção e alento na vida do amiguinho judeu Shmuel.  E como já se sentia um explorador curioso das coisas fantásticas, ele fez aquele menino ser sua melhor descoberta…
Bruno teve a certeza de jamais ter visto um menino tão triste e tão magro em toda a sua vida, mas decidiu que seria melhor conversar com ele.
“Estou explorando”, disse ele.
“Ah, é?”, disse o pequeno menino.
“Sim. Já faz quase duas horas…”
“Descobriu alguma coisa?”, perguntou o menino
“Quase nada”.
“Nada mesmo?”
“Bem, descobri você”, disse Bruno após um instante.
…resumindo, ele foi um verdadeiro amigo que não olhou nenhuma diferença, mesmo separados por uma cerca de arame…
Shmuel se aproximou bastante de Bruno e olhou para ele assustado.
“Sinto muito por não termos encontrado seu pai”, disse Bruno.
“Tudo bem”, disse Shmuel.
“E sinto muito que não tenhamos podido brincar, mas, quando você for a Berlim, é só o que faremos, e eu o apresentarei a… Puxa, como era mesmo que eles se chamavam?”, Bruno se perguntou, frustrado, pois eles deveriam ser os seus três melhores amigos para toda a vida, as tinham desaparecido de sua memória àquela altura. Ele não se lembrava de seus nomes nem de seus rostos.
“Pensando bem”, ele disse, olhando para Shmuel, “não importa se eu lembro ou não. Eles não são mais meus melhores amigos mesmo.” Ele olhou para baixo e fez algo bastante incomum para a sua personalidade: tomou a pequena mão de Shmuel e apertou-a com força entre as suas.
“Você é o meu melhor amigo, Shmuel”, disse ele. “Meu melhor amigo para a vida toda.”
Shmuel poderia ter aberto a boca para responder alguma coisa, mas Bruno não teria escutado porque neste instante ouviu-se o alto ruído de todos os que haviam marchado para dentro engolindo em seco, enquanto a porta da frente foi subitamente trancada e um forte barulho metálico ecoou vindo de fora.
Bruno ergueu uma sobrancelha, incapaz de compreender o sentido daquilo tudo, mas presumiu que tivesse algo a ver com a necessidade de manter a chuva longe e impedir que as pessoas ficassem resfriadas.
E então o cômodo ficou escuro e de alguma maneira, apesar do caos que se seguiu, Bruno percebeu que ainda estava segurando a mão de Shmuel entre as suas e nada no mundo o teria convencido a soltá-la.
A cada história fictícia ou verídica que chega diante de meus olhos, me faz insistir em acreditar que para ser livre, feliz e autêntico, é preciso ser louco. A loucura é que é sadia, porque ela não escraviza as emoções e nem nos poda de viver nenhuma rara oportunidade. Ela derruba corajosamente as cercas e abre as gaiolas que prendem vidas que carregam o medo de chorar, de sofrer, de ser constrangido por coisas banais, de perder direitos…. Esses sim, são doentes porque insistem covardemente durante muitas décadas em não aceitar a cura que sempre os visita.
“Quem encarcera, seda e isola não acredita na razão, nem no resto dela. A lei da reforma psiquiátrica, ao contrário, é humanista, mas baseada em fundamentos técnicos da própria medicina, os quais permitem a realização do tratamento em liberdade…
A lei não desconhece a doença mental. Ela regula a forma de tratá-la. As insuficiências do tratamento não são da lei, mas da deficiência na sua aplicação. A doença é uma coisa normal da vida. O que não é normal é não haver convivência pacífica com ela. O maior problema ainda é de aceitação da dificuldade do outro. A reforma psiquiátrica é, de certa forma, a abolição da escravidão do doente mental, seu fim como mercadoria de lucro dos hospitais fechados, da exploração do sofrimento humano com objetivos mercadológicos.”
Paulo Delgado, “deputado dos doentes mentais”
Dedico meu texto às vidas que se foram dentro do Hospital Psiquiátrico Colônia e também aos poucos sobreviventes que nos ajudaram a conhecer profundamente o que ali dentro visceralmente se passou. Presto minhas admirações à eles, porque em meio a morte em vida, nunca perderam a esperança e nem desistiram da vida.
À escritora mineira, Daniela Arbex, meus agradecimentos por ter deixado para nós e para o seu filhinho Diego, um legado do jornalismo-denúncia, que ousadamente posso afirmar: já marcou a nossa história. Os prêmios que ela tem recebido falam por si.
E aos diferentes e frágeis emocionais, continuo a dedicar minhas reflexões, meu tempo, minha fé e minha certeza de que um dia, nós conseguiremos ser tão insanamente felizes e livres como vocês são.

Fonte: Site http://genialmentelouco.com.br

ASSISTA AO DOCUMENTÁRIO COMPLETO SOBRE O "HOLOCAUSTO BRASILEIRO (2016).


Publicado no You Tube em 21 de fev de 2017

Este documentário lançado em 2016 - dirigido por Daniela Arbex e Armando Mendz e baseado no livro homônimo de Daniela Arbex - mostra o genocídio que aconteceu no Hospital Colônia em Barbacena (MG) enquanto discute questões atinentes ao papel dos manicômios.

"Dentre todas as violências possíveis, a omissão talvez seja a forma mais perturbadora, porque é silenciosa e permite que os estragos perdurem por anos. Só a omissão foi capaz de permitir que 60 mil brasileiros morressem dentro do Hospital Colônia, em Barbacena (MG). Um genocídio no maior hospício do Brasil.

A história transformada em memória mostra os horrores de experiências recentes de segregação, como o Apartheid e o Holocausto. Um ser humano definindo o direito de vida de outro ser humano. Milhões de vítimas e um legado de perplexidade permanente: Do que somos capazes de fazer quando temos poder?

Na tragédia brasileira de Barbacena, os pacientes internados à força foram submetidos ao frio, à fome e a doenças. Foram torturados, violentados e mortos. Seus cadáveres foram vendidos para faculdades de medicina, e as ossadas comercializadas." Revista EXAME


HISTÓRIA DE PACOTI - CEARÁ

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