A dor era tanta que atravessou o tempo ressignificando o sertão. O Quinze ganhou os causos populares como inspiração e adjetivo. Virou referência de comparação para todas as outras secas que vieram desde então.
A Seca do Quinze ganhou projeção na obra de Rachel de Queiroz. Todo ano, ela visitava a fazenda ‘Não me deixes’, dividindo o tempo entre a cadeira do quarto e a rede do alpendre.
Por Beatriz Jucá - publicado em 11.02.2015.
O Quinze foi seco que morria tudo: gente, mato, bicho. Depois de muito tempo sem ver céu bonito pra chover, o jeito era acreditar que o inverno ainda poderia começar em abril. Nada, só água findando e criação morrendo. Quando acabava milho e feijão, era hora de partir. Uma legião se retirava a pé pelos caminhos estreitos quando estrada quase não tinha. Eram famílias inteiras que batiam às portas de casa para viajar atrás de ração de comida, ajeitando os meninos todos em fila e revezando ora a pé, ora no lombo do jumento.
Percorriam as chapadas catando mucunã, pau-de-mocó, xique-xique e maniçoba para fazer a mistura. Iam deixando pela beira das estradas irmão, pai e filho que não conseguissem resistir à fraqueza. Mãe doava menino para que não morresse de fome. O sofrimento era tanto que saiu de 1915 para ressignificar o sertão. E aquela seca, que sertanejo só chama d’O Quinze, deixou de ser fenômeno para virar adjetivo de comparação a todas as outras que vieram desde então.
“Foi a maior seca que houve na história do nosso mundo”, diz Sebastião Gomes de Souza, 67. O Quinze quase não deixou homem quieto no sertão, os caminhos enchendo de casa abandonada na busca por alimentação. O pai de Sebastião tinha cinco anos, mas o ocorrido só contou mesmo de ouvir o pai dele dizer. As famílias saíam andando, e o povo ia morrendo aos poucos, de fome e de sede. Durava o tempo de cansar para sempre e ter a alma encomendada por um bendito improvisado ali mesmo na estrada, dois paus amarrados em cruz para marcar o lugar da morte.
“Nessa estrada aí tem muita cruz das pessoas que regressavam no mundo atrás de recurso e de trabalho nesse tempo. E aí, se esse ano for como tão agourando, uma seca cruel, rapaz, eu vou lhe dizer uma coisa: é no caminho de se acabar tudo”, diz Sebastião. E acrescenta saber que nada no mundo prospera sem água, mas para o agricultor riqueza maior é a terra: “Porque nós sabe manejar. Toda vida trabalhemo foi assim mesmo. A vida no Ceará sempre foi dessa maneira: um ano bom, dois ruim. Aqui pra cima só quem sabe é um. E o que ele faz não manda dizer pra ninguém. Não vai escrever. Se tiver um invernozinho que aumente um pouquinho nosso depósito d’água e crie alimentação, tá bom. Se escapar o que nós tem, já tamo é rico”.
Vontade de comer Sebastião já passou muito, por isso ergue as mãos para cima agradecendo que, diferente do outro Quinze, hoje não vê gente passando fome. Seca como aquela, só a de 77, quando a família repartia a rocinha plantada na beira do açude com quem passasse precisão. Hoje, só divide a água do açude próximo ao assentamento onde mora, em Tamboril. “Enquanto tiver, a gente reparte né? E aí minha vida tem sido assim, desejando que chova o quanto for pra gente atravessar outro ano. E se Deus e Nossa Senhora quiser, mais outro e mais outro”.
Cem anos depois d’O Quinze, as pessoas pouco precisam deixar suas casas. Os programas sociais do governo vêm dando conta de evitar que o sertanejo inche de fome. Essa diferença dos dois quinzes derrama lágrima no sertão quando se fala em prato de comida. Isabel Santos de Souza cresceu em Tamboril, ouvindo a mãe recontar as histórias dos avós sobre a grande seca. A prosa passeava pelo alimento: o mucunã era lavado em nove águas porque tinha veneno, depois era pilado para fazer um cuscuz; a maniçoba era ralada como se fosse batata para dar a goma do pão; o pau-de-mocó tinha a raiz retirada e pisada para poder virar alimentação. “Quando minha mãe contava essas coisas, eu imaginava: Meu Deus, como é que eles comiam pau-de-mocó?”, pergunta Isabel. Mas as plantas do mato ainda marcavam tempo bom. Naquele 1915, os retirantes comiam na estrada o que aparecia: de couro de bicho cozido e sola sapecada à criação morta disputada com urubus. Não era raro gente morrer e matar em disputa por ovelha para comer. O desespero era tanto que atravessaram gerações as histórias dando conta de filha moça vendida na estrada ou de mãe que doava o filho para evitar vê-lo morrer de fome.
“A fome era tão braba que comiam animal, burro, até gente tentaram comer. Só porque não deu certo. Quando botaram o sal, a carne desmanchou. Aí na hora não teve condição não. Eles contam, né?”, diz Domingues de Souza Feitosa, 67. Daquele Quinze, ele guarda o que ouvia o bisavô contar. Era bem diferente de hoje, que ele consegue manter a família vendendo o cheiro vende plantado no quintal de casa, na zona rural de Tamboril. N’O Quinze, se tirava a comida dos matos porque não se sabia produzir outros tipos de alimentação nem reaproveitar a água. “Aí quando vinha a seca, se acabava a alimentação, e eles iam passar fome”, diz. Mesmo quando tinha ação do governo, era para beneficiar patrão ou juntar os retirantes em campo de concentração para morrer.
“Hômi, O Quinze foi a seca mais perigosa do mundo”, Zé Favela ouvia a mãe contar no Tauá. A graça de hoje, ele diz, é perceber que não precisou enfrentar seca grande assim. “Minhas secas já eram boas. Não passei muita precisão porque os hômi do governo já tinham coragem de dar comida pra gente. Certo que o arroz era ruim e o feijão preto a gente botava na panela e ficava nadando, pelejava pra cozinhar. Mas vinha o de comer”.
Na localidade de Viração, em Tamboril, Raimundo Pereira da Luz Santos senta em uma cadeira de plástico no alpendre alto de casa. Ele passa as mãos repetidas vezes pelos cabelos brancos já escassos para depois repousá-las cruzadas sobre a barriga. Aperta os olhos para o terreno que rodeia a casa, curvando de vez em quando o corpo para a frente, como se tentasse absorver em memória a paisagem seca. As lembranças já lhe falham aos 90 anos e a seca parece que virou uma só, emendando as de 15, 32, 48, 54. Do que ele conta, há histórias que viveu e outras que apenas ouviu, mas todas elas remontam à desolação que seguiu depois d’O Quinze no sertão. “Nesse tempo tava muito seco, não tinha o que comer nem pra bicho, muita gente passando fome”, ele diz. Seus antepassados quilombolas chegaram ao sertão dos Inhamuns no tempo em que a maioria fazia o caminho inverso fugindo da seca. Mas, depois de conseguirem sobreviver às lutas indígenas na região de Baturité, restou-lhes a opção de resistir naquela terra seca. Ali, fazendo o percurso serra-sertão em tempo de verão e inverno, resistem há cem anos. Foi ali que Raimundo aprendeu a decifrar terra e ler aviso de chuva. “Nas minhas experiências, não vai ter inverno não. Eu tô pedindo a Deus que tenha pelo menos água e uma forragenzinha, mas inverno pra dar milho e feijão não vai ter não”.
No município de Pedra Branca, já no Sertão Central do Ceará, Antônio Francisco de Lima,64, viciou em conversar com gente antiga, recontando os causos em cordel. D’O Quinze, sempre ouviu que foi a maior das secas, a que espalhou o perigo do fogo do fim do mundo no sertão. Os mais velhos diziam aos mais novos: “Talvez seja o fim. Já tá se acabando os animais, depois acaba o resto”. A profecia não concretizou, e Antônio ainda viu, criança, o estrago da grande seca de 70 contrastar com as histórias que ouvia da era chuvosa de 60. “O povo com necessidade, e fiquei perguntando: Meu Deus, porque é que tem dez anos de bom inverno e o pessoal não tem como passar um ano sem sofrimento?. Alguma coisa eu acho que tá errada até hoje”
Pessoas morriam de fraqueza na estrada. Ali mesmo, tinham a alma encomendada pela família, dois paus amarrados em cruz para marcar o lugar da morte.
Raimundo Pereira da Luz Santos conta histórias que viveu e que ouviu, remontando a desolação que seguiu depois d’O Quinze.
Fonte: Jornal Diário do Nordeste.
Fotos de Fabiane de Paula e Eduardo Queiroz.
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