“Hoje nós começamos a percorrer o ‘Centro Psiquiátrico’ de Barbacena, como o governo insiste em rotular. Os primeiros de seus dezesseis pavilhões. Suas enfermarias, seus pátios. Não encontramos os loucos terríveis que supúnhamos. Seres humanos como nós. Pessoas que, fora das crises, vivem lúcidas o tempo todo. Sabem quem são e o que fazem ali. O que os espera no fim de mais alguns dias, alguns anos. Pessoas que pedem para ser fotografadas, pedem a publicação de seus nomes. Insistem em voltar à sociedade, à família, ao afeto, à liberdade. Nem todas, porém. As alienadas, de tão drogadas, de tantos choques, tanta prisão. Crianças que não conseguem nem se locomover. Mas a maioria insiste em ter esperança de ser tratada como ser humano. Ainda há tempo.”(Hiram Firmino)
Enquanto maldades e atrocidades contra pessoas indefesas, como crianças, idosos, debilitados, portadores de deficiências físicas e doenças emocionais estiverem sendo retratadas apenas em uma tela ou em páginas de livros fictícios, nossas vidas, nossas mentes, nossos sentimentos e a nossa visão sobre o ser humano não serão completamente transformados, impactados ou virados de cabeça para baixo. Mas, e se inesperadamente algo ainda desconhecido por nós, trouxer a oportunidade de nos confrontar, nos colocando diante de uma história real, bizarra, cruel e inacreditável que aconteceu dentro do seu próprio país? Justamente em uma parte onde muitos fatos históricos carregados de revoluções humanas e crescimentos importantes contribuíram para o desenvolvimento da nação? Como entender que em um mesmo lugar com tamanha riqueza cultural, de grandes movimentos transformadores foi permitido interromper tantos desenvolvimentos humanos, aniquilando vidas?
Refiro-me ao livro da jornalista Daniela Arbex, Holocausto Brasileiro, (2013) que nos apresenta com riquíssimos detalhes, através de uma apurada investigação, o início e o fim de uma trajetória de injustiças, abandono, violência, desrespeito, falta de dignidade e excessivas dores que mais de 60 mil vidas foram submetidas, sem nenhuma explicação. Esses horrores iniciavam dentro de vagões de um trem que chegava à estação Bias Fortes, chamado “trem de doido”. A locomotiva os levava para uma viagem sem volta. Através dela, pessoas começavam um novo e aniquilante tempo sendo presas até a chegada da morte no suposto Hospital Psiquiátrico Colônia, localizado em Barbacena, Minas Gerais.
Ainda não posso afirmar como se encontra meu interior depois dessa leitura. Tamanhas são as misturas de sentimentos, revoltas, lágrimas, espanto e até mesmo incredulidade diante de tantos males que descobri e que ainda estão vivas em minha memória. O que agora compartilho é o que me sinto relativamente aliviada em saber que essa história tão trágica de um dos maiores manicômios do Brasil, mesmo sendo muito tarde, chegou ao fim. Penso nas vidas que foram sacrificadas para que seus corpos absurdamente fossem vendidos em nome da pesquisa e da ciência… Excluídos da vida, perdendo o direito de usarem todos os seus sentidos naturalmente, porém em morte suas carnes e seus ossos serviram para gerar dinheiro, além de ajudar a “evoluir” a ciência em tantos laboratórios e hospitais de Minas Gerais.
Uma reflexão visitou minha mente várias vezes e até agora ainda alimenta minhas opiniões, me causando diversas emoções confusas entre revolta, tristeza e incapacidade de acreditar que em nosso solo existiu um campo Nazista: o manicômio Colônia. Ali, muitos funcionários também foram cúmplices, querendo ou não, dos fatos horrendos que a história não nega e nem esconde.
Pergunto-me quais interrogações àquelas vítimas carregavam. Será que tentavam em vão compreender o que fizeram para irem para aquele lugar? Que doenças eram aquelas que ao invés de receberem um tratamento, eram torturados com choques, lobotomia, duchas escocesas e abandono até a morte? Desde aquela época até hoje, não há outra forma melhor de chamar aquele hospital, do que um Holocausto, já que existem muitas semelhanças entre as atrocidades cometidas nesse local com as que ocorreram nos campos de concentração, durante a segunda Guerra Mundial. Nós, brasileiros, não tivemos oportunidade para olhar de perto o extermínio de vidas devido a indiferença nascida do preconceito.
Através dos tensos e sufocantes depoimentos, Daniela Arbex, teve acesso à realidade vivida pelos pacientes que tiveram o ciclo de suas histórias cortadas, amputadas por serem simplesmente diferentes ou por terem manifestado algum tipo de senso de ousadia e justiça em seu cotidiano. Naquela época (a partir de 1911), não era necessário uma pessoa apresentar fragilidades mentais ou emocionais, para ser internada com o propósito de um tratamento psicológico. Bastava ser um adulto tímido, triste, epilético, ter alguma fraqueza com bebidas, ser homossexual, prostituta, ter perdido seus documentos, a virgindade ou ter sido uma mulher abandonada pelo marido. E as crianças? Como iam parar ali? Elas também eram abandonadas por suas famílias naquele lugar, após terem a certeza que eram portadoras de algum tipo de deficiência. Eu me vi nelas e chorei. Não havia a dignidade de se ter um nome, porque isso não tinha importância para a instituição. O nada não precisa ter identidade, o nada é vazio. Vestimentas não eram necessárias e suas cabeças eram raspadas, inexplicavelmente… não havia nenhum toque de humanidade naqueles corpos… Ninguém mais era dono de sua vida e nem responsável por suas vontades… não havia um alimento digno, o que era servido tinha a aparência de lavagem . Os responsáveis por esse domínio cruel e pelas amputações de vidas, estavam tanto do lado de fora, quanto dentro do hospital: uns saíram de dentro das próprias famílias dos pacientes, outros do poder público da Cidade dos Loucos.
Se é que existe de fato alguma mazela classificada de loucura, com certeza passou a existir naquelas vidas porque foi imposta pelos seres “normais” que dominavam aquele ambiente hostil. Até hoje, mesmo com o nascimento de muitos médicos humanizados, seguidores da visão antimanicomial, infelizmente ainda há um domínio humano sem sensibilidade que insiste em tentar nos convencer de que a precariedade mental se encontra naquele que vive dentro de seu mundo inconsciente, buscando por diversos meios unicamente se conhecer e compreender o que se passa ao seu redor. Loucos, insensatos são aqueles que provocam muitos barulhos e violências nessas vidas, através de grades, drogas, amarras e surras. Tomando o controle de toda a liberdade e de mínimos direitos… Que intenção há nessa exclusão de afeto? Não se devolve a dignidade e a vida comum que há dentro da sociedade, excluindo a pessoa da interação e do convívio social.
“Vocês precisam entender que não somos tomadores de conta. Somos cuidadores. Os doentes têm o direito de retornar para a sociedade.”
Sabemos que onde falta amor, certamente falta visão externa e alma… e se falta alma, falta a vida, e se não há vida, nunca haverá sensibilidade para se saber o quanto se pode ferir um pássaro-humano, prendendo-o numa “gaiola”.
A cada página virada com cuidado aguardando mais um sofrimento ou renascimento, me vinha à lembrança, a história fictícia do livro “The Boy in the Striped Pyjamas”, (O menino do pijama listrado) de John Boyne, que retrata muito bem essa acepção com uma vida semelhante à nossa, mas afastadas e evitadas por carregarem um pensamento diferente ou terem outra cultura. Que existam mais Brunos entre nós! Que outros também consigam olhar o diferente sem desprezar o que ele é e o que pensa. Que pijamas listrados ou azulões, cor do que era usado na Colônia, não sejam usados com o propósito de separar vidas que são iguais às nossas.
Apesar de todo “nazismo” que há a cada página do livro de Daniela Arberx, pude identificar que a esperança existiu, e através dos relatos, reconheci muitos guerreiros humanizados do movimento antimanicomial que lutaram/lutam pelo fechamento não só daquela unidade, mas tantas outras que existem em nosso país.
Insisto em tentar acreditar que aquele sacrifício humano fez muitas pessoas se levantarem, se incomodando com o silêncio para proclamar uma verdade: quem precisa de cura é a humanidade preconceituosa e insensível. Tive essa certeza através de várias pessoas citadas na história que fazem parte do grande número de excelentes cuidadores, fora e dentro da medicina, que se doaram, mostraram imagens e filmes sem medo e sem pudor dos encarcerados daquele lugar. Não fizeram acepção e nem desistiram de lutar pelos menos favorecidos, ensinando até coisas simples, por exemplo, defecar e urinar no lugar adequado, necessidades básicas que aquelas pessoas deixaram de ter… Também presentearam aqueles pés com calçados, os corpos com vestimentas, a cabeça com cafuné e as almas com os abraços que não conheciam… Esses sensibilizados fizeram o impossível por várias décadas, até perderem o direito de exercer sua profissão como punição pelas vidas perdidas naquele manicômio. Muitas delas puderam viver na realidade, um pouco do que Bruno, o personagem alemão do livro de John Boyne, tentou ser em sua inocência infantil: um anjo, um doador de alimento, de atenção e alento na vida do amiguinho judeu Shmuel. E como já se sentia um explorador curioso das coisas fantásticas, ele fez aquele menino ser sua melhor descoberta…
Bruno teve a certeza de jamais ter visto um menino tão triste e tão magro em toda a sua vida, mas decidiu que seria melhor conversar com ele.“Estou explorando”, disse ele.“Ah, é?”, disse o pequeno menino.“Sim. Já faz quase duas horas…”“Descobriu alguma coisa?”, perguntou o menino“Quase nada”.“Nada mesmo?”“Bem, descobri você”, disse Bruno após um instante.
…resumindo, ele foi um verdadeiro amigo que não olhou nenhuma diferença, mesmo separados por uma cerca de arame…
Shmuel se aproximou bastante de Bruno e olhou para ele assustado.“Sinto muito por não termos encontrado seu pai”, disse Bruno.“Tudo bem”, disse Shmuel.“E sinto muito que não tenhamos podido brincar, mas, quando você for a Berlim, é só o que faremos, e eu o apresentarei a… Puxa, como era mesmo que eles se chamavam?”, Bruno se perguntou, frustrado, pois eles deveriam ser os seus três melhores amigos para toda a vida, as tinham desaparecido de sua memória àquela altura. Ele não se lembrava de seus nomes nem de seus rostos.“Pensando bem”, ele disse, olhando para Shmuel, “não importa se eu lembro ou não. Eles não são mais meus melhores amigos mesmo.” Ele olhou para baixo e fez algo bastante incomum para a sua personalidade: tomou a pequena mão de Shmuel e apertou-a com força entre as suas.“Você é o meu melhor amigo, Shmuel”, disse ele. “Meu melhor amigo para a vida toda.”Shmuel poderia ter aberto a boca para responder alguma coisa, mas Bruno não teria escutado porque neste instante ouviu-se o alto ruído de todos os que haviam marchado para dentro engolindo em seco, enquanto a porta da frente foi subitamente trancada e um forte barulho metálico ecoou vindo de fora.Bruno ergueu uma sobrancelha, incapaz de compreender o sentido daquilo tudo, mas presumiu que tivesse algo a ver com a necessidade de manter a chuva longe e impedir que as pessoas ficassem resfriadas.E então o cômodo ficou escuro e de alguma maneira, apesar do caos que se seguiu, Bruno percebeu que ainda estava segurando a mão de Shmuel entre as suas e nada no mundo o teria convencido a soltá-la.
A cada história fictícia ou verídica que chega diante de meus olhos, me faz insistir em acreditar que para ser livre, feliz e autêntico, é preciso ser louco. A loucura é que é sadia, porque ela não escraviza as emoções e nem nos poda de viver nenhuma rara oportunidade. Ela derruba corajosamente as cercas e abre as gaiolas que prendem vidas que carregam o medo de chorar, de sofrer, de ser constrangido por coisas banais, de perder direitos…. Esses sim, são doentes porque insistem covardemente durante muitas décadas em não aceitar a cura que sempre os visita.
“Quem encarcera, seda e isola não acredita na razão, nem no resto dela. A lei da reforma psiquiátrica, ao contrário, é humanista, mas baseada em fundamentos técnicos da própria medicina, os quais permitem a realização do tratamento em liberdade…A lei não desconhece a doença mental. Ela regula a forma de tratá-la. As insuficiências do tratamento não são da lei, mas da deficiência na sua aplicação. A doença é uma coisa normal da vida. O que não é normal é não haver convivência pacífica com ela. O maior problema ainda é de aceitação da dificuldade do outro. A reforma psiquiátrica é, de certa forma, a abolição da escravidão do doente mental, seu fim como mercadoria de lucro dos hospitais fechados, da exploração do sofrimento humano com objetivos mercadológicos.”Paulo Delgado, “deputado dos doentes mentais”
Dedico meu texto às vidas que se foram dentro do Hospital Psiquiátrico Colônia e também aos poucos sobreviventes que nos ajudaram a conhecer profundamente o que ali dentro visceralmente se passou. Presto minhas admirações à eles, porque em meio a morte em vida, nunca perderam a esperança e nem desistiram da vida.
À escritora mineira, Daniela Arbex, meus agradecimentos por ter deixado para nós e para o seu filhinho Diego, um legado do jornalismo-denúncia, que ousadamente posso afirmar: já marcou a nossa história. Os prêmios que ela tem recebido falam por si.
E aos diferentes e frágeis emocionais, continuo a dedicar minhas reflexões, meu tempo, minha fé e minha certeza de que um dia, nós conseguiremos ser tão insanamente felizes e livres como vocês são.
Fonte: Site http://genialmentelouco.com.br
ASSISTA AO DOCUMENTÁRIO COMPLETO SOBRE O "HOLOCAUSTO BRASILEIRO (2016).
Publicado no You Tube em 21 de fev de 2017
Este documentário lançado em 2016 - dirigido por Daniela Arbex e Armando Mendz e baseado no livro homônimo de Daniela Arbex - mostra o genocídio que aconteceu no Hospital Colônia em Barbacena (MG) enquanto discute questões atinentes ao papel dos manicômios.
"Dentre todas as violências possíveis, a omissão talvez seja a forma mais perturbadora, porque é silenciosa e permite que os estragos perdurem por anos. Só a omissão foi capaz de permitir que 60 mil brasileiros morressem dentro do Hospital Colônia, em Barbacena (MG). Um genocídio no maior hospício do Brasil.
A história transformada em memória mostra os horrores de experiências recentes de segregação, como o Apartheid e o Holocausto. Um ser humano definindo o direito de vida de outro ser humano. Milhões de vítimas e um legado de perplexidade permanente: Do que somos capazes de fazer quando temos poder?
Na tragédia brasileira de Barbacena, os pacientes internados à força foram submetidos ao frio, à fome e a doenças. Foram torturados, violentados e mortos. Seus cadáveres foram vendidos para faculdades de medicina, e as ossadas comercializadas." Revista EXAME