sábado, 17 de junho de 2017

Texto: Pra não dizer que não falei das flores, falarei dos horrores de um tempo sombrio.

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Por: Elienae Maria Anjos

NOVAS PÁGINAS DE UMA HISTÓRIA ESCRITA COM SANGUE…
“Fui despertada pela vontade de contar histórias de pessoas… Deixei a escola com a esperança de transformar a realidade social por meio do meu trabalho.”
Folhear e se alimentar de um texto escrito pela jornalista Daniela Arbex nunca será fácil, porém, uma coisa é certa, sempre será viciante e muito esclarecedor, pois seu profissionalismo é eletrizante, feito de corpo e alma… Tão intenso que durante a leitura nos sentimos praticamente ao seu lado absorvendo cada pedacinho dos muitos casos trancafiados nos baús com episódios de denúncias mudas e cegas do passado. Sua narrativa é real, tão visível e palpável que é possível compreender os códigos e mistérios que guardam verdades propositalmente desaparecidas ou esquecidas, por mais que capítulos já tenham sido descobertos e lidos em nosso país.
“Disposta a contar um capítulo inédito da ditadura, iniciei ainda naquele março de 2002 o trabalho de investigação que tinha duas frentes: levantar o que se passou com o único civil da guerrilha do Caparaó até o momento de sua morte e localizar os militantes da cidade que haviam pleiteado reparação junto à Comissão Estadual de Indenização às Vítimas de Tortura…”
Uma nova página em branco foi removida dos porões abandonados, renascendo neste livro que se abre para conhecermos mais um poucos sobre o Brasil. Parece-me que a história aguardava alguém que assumisse com coragem e ousadia a missão de trazer à tona segredos obscuros sem medo de expor as mentiras e omissões sobre a ditadura, nos anos de 1964. Daniela Arbex (reconhecida e grandemente premiada com vários títulos, inclusive um deles se deve pelo primeiro livro Holocausto Brasileiro, publicado também pela Geração Editorial e que retrata o grande genocídio no Hospital Colônia, Barbacena-MG, o maior hospício do Brasil) não deixou escapar esse momento que surgiu diante de seus olhos, explorando o que estava oculto, atrás de algum facho de luz de dentro das cadeias minúsculas, mas repletas de mágoas, dores e lembranças sofridas, mergulhadas em lágrimas, sangue e crueldades sem limites. Tem resenha de Holocausto Brasileiro aqui.
CORAGEM NO CORAÇÃO E LUPA NA MÃO…
“…Ambas foram tarefas difíceis. A primeira porque era permeada por silêncio. A outra em função de muitas vítimas do período terem receio de se expor publicamente em uma matéria de jornal. Foi preciso conquistar a confiança de cada uma delas.”
Daniela Arbex, em Cova 312, sem reservas, não se importando com as dificuldades que enfrentaria, perseguiu inéditas e bombásticas informações, tendo como foco um fio quase invisível e pouco explorado de uma história repleta de espaços vazios do início ao fim, aliás, não teve fim, o que houve somente foi uma borracha que apagou sérios e impactantes acontecimentos vivenciados na Penitência de Linhares, em Juiz de Fora, que decifraria o suposto suicídio e desaparecimento do corpo do jovem guerrilheiro, de apenas 26 anos, Milton Soares de Castro, em 1967.
“Naquele momento, eu não compreendia o tamanho da dor que tudo causava. Remexer o passado era como cutucar feridas que não haviam cicatrizado.”
Movida por sua grande curiosidade e insistência, ela remexeu em sentimentos adormecidos, encontrando pessoalmente outras histórias, através das investigações e das várias referências literárias que há em todo o livro, sem contar o riquíssimo acervo fotográfico contendo imagens inéditas nos arquivos públicos e pessoais dos ex-militantes. Várias provas vivas e tristes dos muitos sonhos iniciados através de corações desejosos por uma democracia sem utopias ou escravidão. Igualdade para todos era o foco daquelas vidas. De seus quartos e esconderijos, o que era um segredo, ganhou as ruas, as montanhas ou outros locais que pudessem servir de base para o nascimento e a sobrevivência das muitas guerrilhas que protestavam e agiam, pelo furor da juventude e da revolta dos desertores militares.
“Naquela altura dos acontecimentos, ele já compreendia que os livros lidos na Galileu Galilei, a pequena biblioteca montada em sua casa, o ajudaram a sonhar com um país livre, mas não o prepararam para o cárcere.”
GIGANTES GUERRILHEIROS PELA PRÓPRIA NATUREZA…
“Os presos políticos não podiam conversar entre si. No entanto… Fizeram da música uma forma de se expressarem, transformando as canções em armas de resistência.”
Apesar do conhecimento que tenho sobre os fatos trágicos que muitos vivenciaram durante o período em que o país foi comandado por fascistas e de ter derramado muitas lágrimas pelos diversos jovens que sofreram torturas que não cabem dentro de uma só palavra, de tão intensas que foram, em meio a esses turbilhões, o livro de Daniela Arbex me despertou de tal forma, que alguns pontos inesquecíveis ficarão por muito tempo presentes me levando a refletir sobre o presente e o futuro dessa nação.
“Longe de casa, da família e até de seus amores, os presos políticos recorriam à música para expressar sentimentos. Cantavam a dor, o amor, a saudade… Cantavam para convencer a si mesmos que estavam vivos. E ainda para protestar e resistir, mas principalmente para sentirem-se livres.”
Apesar da dor no passado, das escolhas de hoje, do grito contido na história… “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”, Cova 312, me alertou que nos dias de hoje, ainda é preciso relembrar incessantemente sobre o Golpe de 64, sobretudo devemos falar dos corações revolucionários dos estudantes e de pessoas simples que tiveram suas mentes feridas, seus corpos violentados, mutilados e afastados de seus entes… Diante de tanto infortúnio, a Arte foi para eles como uma válvula de sustentação, porque por ela, muitos conseguiam despertar seus ânimos e expor suas opiniões… “como beber dessa bebida amarga? Tragar a dor, engolir a labuta, mesmo calada a boca, resta o peito silêncio na cidade não se escuta”… Assim, os artistas também lutavam à sua maneira, alimentando a fé com canções, peças teatrais e poesias, mesmo que a censura nunca baixasse a guarda, as letras se tornaram hinos da pátria tão sonhada por aqueles guerrilheiros…
Mesmo sabendo que “a mão que toca um violão, se for preciso faz a guerra, mata o mundo, fere a terra.” …“Não ande nos bares, esqueça os amigos, não pare nas praças, não corra perigo, não fale do medo que temos da vida, não ponha o dedo na nossa ferida”… “Os dias eram assim, perdoem a falta de folhas, perdoem a falta de ar, perdoem falta de escolha, os dias eram assim”… e… “sei que nada será como está, amanhã ou depois de amanhã…” Para cada informação, uma curiosidade musical surgia de minha memória, pois, mesmo não sendo uma obra musical, Daniela Arbex, trouxe revelações que me fizeram entender as letras dos cantores-militantes daquela época, por conta disso, uma trilha sonora deixou vários rastros históricos em minha mente durante a leitura, me fazendo ler e cantar: “Os amores na mente, as flores no chão, a certeza na frente, a história na mão… Caminhando e cantando… e seguindo a canção, aprendendo e ensinando uma nova lição… Vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer…”
“A perda da própria liberdade era o preço a pagar por manter livres as ideias.”
Pra não dizer que não falei das flores, falarei do que é presente desde o início, que mostrou a coragem, a ousadia e a imensurável determinação que havia nos homens e mulheres daqueles dias repletos de arrogância e cegueira.  Sinto-me constrangida, mas me encorajo em questionar: como é possível insistir no erro do passado diante do que já foi visceralmente vivido? Cova 312 foi escrito para esse atual Brasil, com filhos sofrendo de amnésia, pois fatos como esses não deveriam nunca ser apagados de nossas memórias. Daniela Arbex, como de costume, escreveu um livro tendo em seu coração a disposição de lutar contra o sepultamento das verdades em covas rasas de nossas mentes, tão suscetíveis ao deslumbramento do presente. Não devemos esquecer que somos frutos que nasceram das sementes que morreram nesse mesmo solo de torturas! Nós deveríamos ser hoje o novo tempo, pois a democracia se estabilizou a  partir das batalhas que eles viveram, por isso, é a nossa obrigação como cidadão brasileiro não permitir que nossos filhos, sobrinhos e netos se percam regredindo ao militarismo do passado.
“Reeditar nas ruas do país marchas pela ordem clamando o retorno da ditadura é desconhecer os anos de sombra que envolveram o Brasil ou aceitar que a força supere o diálogo e o esforço histórico dos movimentos populares na busca por caminhos de paz.
Esta resenha, de autoria de Elienae Maria Anjos, foi publicado originalmente no site Leituras da Paty.

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