sexta-feira, 23 de junho de 2017

O índio brasileiro: ainda um vazio na história.

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(Ilustração retirada do Google imagens)

A Academia Virtual de História traz um belíssimo texto do historiador e professor universitário Augusto Moutinho, sobre a questão indígena no Brasil, que praticamente vive no anonimato, quase nada é produzido a respeito. É necessário mais estudo e pesquisa quanto a importância da cultura indígena na formação do povo brasileira, como afirma  Moutinho no texto que "(...) a história do indígena permanece adormecida, ou sendo compreendida a partir de pseudo-interpretações". É o que normalmente ocorre. A história do Brasil fica centrado somente no branco, no europeu, ou seja,  uma história dos "vencedores", do colonizadores. Enquanto a figura do índio é apresentada como um preguiçoso e a do negro como escravo. 

Por Augusto Moutinho

Ao contrário do direcionamento incontável de análises sobre o negro, desde o início do século -- problematizando e enfocando os horrores da escravidão -- o índio tem ocupado um espaço microscópico em nossa historiografia. Esse lugar infinitamente pequeno e secundário que foi dedicado à história indígena tem legado esses povos ao esquecimento, ou lembrados subitamente em flashs sensacionalistas. O índio tem uma história; uma história indubitavelmente plural. É necessário então reconstituir o verdadeiro cenário; desconstruir abordagens simplistas que eurocentrizaram as análises, configurando o indígena num ambiente social exótico e primitivo.
Elementos como a antropofagia ameríndia ainda povoam o imaginário coletivo. A pintura de Theodor de Bry é reveladora das representações criadas pelo europeu, no começo dos tempos modernos, para o nativo brasileiro.
Essa resignificação histórica é também um resignificar de consciência. Para os indígenas é um olhar-se sobre si, reconstruindo suas identidades que, por tanto tempo foram mascaradas e ou desfiguradas por uma miopia historiográfica. As representações criadas para o indígena brasileiro ainda são projetadas e extrapoladas no infinito, passando a justificar tanto o presente quanto o futuro.

Notadamente, os etnólogos têm contribuído para uma investigação pormenorizada das sociedades indígenas. Dos mais antigos, escorados em Lèvi-Strauss ou Métraux, até os mais recentes como Roberto Cardoso de Oliveira, Maria Manuela Carneiro da Cunha, entre outros, procuraram se debruçar sobre o sentido da guerra, a organização social, as relações de parentesco, a religiosidade, e uma vastidão de assuntos, pormenorizando assim o universo social e cultural do índio. Contudo, e apesar dos notáveis trabalhos no campo etnológico, tais abordagens não substituem as análises históricas; estas se constituem um campo ainda embrionário no Brasil.

A historiografia brasileira, no entanto, vale-se de exemplos notáveis de autores que direcionaram suas análises para esse âmbito. Trabalhos como o de Stuart B. Schwartz, Segredos Internos; Ronaldo Vainfas, A heresia dos Trópicos; Ronald Raminelli, Imagens da colonização, ajudaram a diminuir o grande vazio que se formou por falta de abordagens mais específicas. É preciso insistir, porém, que as lacunas permanecem. Malgrado o brilho de tais trabalhos, a história do indígena permanece adormecida, ou sendo compreendida a partir de pseudo-interpretações. Se ampliarmos o poder da nossa lente, perceberemos que nos níveis escolares de primeiro e segundo graus, as representações construídas para o indígena brasileiro são ainda mais distorcidas e comprometedoras. Infelizmente o livro didático ainda é o filho abastardo das discussões e produções acadêmicas. O pouco que se tem avançado nessa área nas universidades, ainda não atingiu em cheio os manuais didáticos.

O conhecimento histórico tem experimentado uma intensa renovação nos últimos sessenta anos. Já na década de trinta a Escola dos Annales propõe novas temáticas para a história, contrapondo-se à historiografia positivista. Papel semelhante exerceu a Nouvelle Histoire, investindo nas mentalidades e questionando o próprio lugar de onde o historiador escreve. O marxismo também não ficou estático: de Gramsci a Eric Hobsbawn e E. P. Thompson, um estado de profunda efervescência intelectual ganhou corpo na arena do conhecimento histórico.

Nos últimos anos, contudo, tais modelos passaram por uma importante mudança de ênfase, a partir do interesse cada vez maior pela história cultural. As críticas movidas à disciplina (História) e ao próprio conceito de mentalidades contribuíram de fato para essa redefinição. A história cultural apresenta-se então como o grande refugio epistemológico.

As representações sociais mostram-se multifacetadas, o que determina, de certa forma o caráter plural da Nova História Cultural. Abordagens ancoradas nesse campo ampliariam o leque de problematizações acerca da história indígena. Apesar de distintos, modelos de história cultural de Ginzburg, Chartier e E. P. Thompson, pontuam elementos teórico-metodológicos tão importantes quanto necessários para a compreensão do processo histórico-cultural dos povos. É nesse sentido, que se faz necessário um direcionamento epistemológico que possibilite a resignificação histórica dos povos indígenas, considerando toda a sua complexidade cultural.

Esse eixo temático deve, em regime de urgência, ser ampliado e apresentado de forma mais consistente no livro didático, articulando-se então a outros temas. Para isso faz-se necessário uma desconstrução, principalmente no tocante a periodizações e tematizações. Geralmente, por ordem didática, ou até mesmo por determinações metodológicas, os capítulos são estratificados (política, economia, sociedade), limitando os aspectos culturais a subitens, quando não determinados por estruturas econômicas.

Outrossim, o conceito de sincretismo deve ser revisto, afastando as possibilidades de folclorização da cultura indígena, que ainda vem sendo tratada como elemento estático na História do Brasil. Esse sincretismo deverá ser percebido num contexto de circularidades e inter-relações com outras culturas. Reduzir a contribuição da cultura indígena a sua "herança" (vocabulário, comidas...), tal como vemos nos livros didáticos, é empobrecer a sua história.

Vale ressaltar que não se trata de decompor os discursos, tomando-lhes de assalto, num estado genérico de histeria revanchista. "Não se trata aqui de construir uma história-revanche, que relançaria a história colonialista como um bumerangue contra seus autores, mas de mudar a perspectiva e ressuscitar imagens esquecidas ou perdidas", salienta J. Ki-Zerbo em sua História Geral da África. Portanto, reescrever a História Indígena é, antes de tudo, modificar os discursos que durante tanto tempo representaram os nossos nativos com os mais nocivos e pejorativos adjetivos. É apontar, definitivamente, perspectivas mais seguras de compreensão do universo histórico e cultural do índio.

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